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Canta-me um hino!

quinta-feira, dezembro 07, 2006

O Natal dos Outros Meninos

(reedição)


A árvore de Natal cintila de luzinhas na sala. Penduradas nos ramos, bolas vermelhas de pasta de papel que fizemos durante as tardes de domingo à lareira e penduramos com laços prateados. Meninos felizes, de cabelo sedoso e olhos brilhantes. Meninos que se aninham junto a mim no sofá, debaixo do edredão, a comer pipocas e a ver o Shrek 2.
E os outros meninos?
Na escada, à porta de casa dos avós, está o saco de musgo para o presépio. Vai ser montado no fim-de-semana, naqueles momentos únicos de partilha entre avós e netos. O rio de papel de prata, a cabana de pedras e paus. Meninos de mãos sujas que levam à boca. Meninos com a cara coberta de nódoas de alegria. Meninos com lágrimas gordas porque "aquela ovelha era eu que punha!"
E as lágrimas dos outros meninos?
A lista de presentes com destino à Lapónia, revista desde Novembro e sempre com coisas a acrescentar. A certeza da pilha de embrulhos junto ao sapatinho na Véspera de Natal. A desilusão porque o Pai Natal se esqueceu de dois ou três itens mais arrojados (o computador portátil e a câmara de filmar, necessidade básica de uma criança de 6 anos). Meninos gulosos lambuzados de bolo de cenoura. Meninos que cheiram a champô de maçã, ou a cão molhado quando chegam da tarde de brincadeira no colégio.
E as desilusões dos outros meninos?
Se é que se desilude quem nunca teve uma ilusão.
Não, estou errada. Eu é que não concebo como ilusão aquilo que ilude os outros meninos e então, na minha estúpida futilidade, envergonho-me.
A ilusão de uma sopa quente num estômago que dói de vazio. A ilusão de um beijo de boa noite e uma história para adormecer. A ilusão de que uma mão adulta serve para uma festa, um abraço e não para dar pancada. A ilusão de ter uma família. A ilusão de ter quem lhes pegue ao colo quando a noite é muito escura ou se esfolou um joelho.
Ilusões que estão tão longe das luzinhas da árvore e dos presentes da lapónia, que me é impossível quantificar o desgosto que proporcionam.
Não sei nada, eu, desses meninos.
Não sei nada dos meninos que, com 50 dias de vida vão parar pela quarta vez ao hospital, vítimas de maus-tratos. Não sei nada dos meninos que os corpos são violentados, martirizados, desaparecidos. Não sei nada dos meninos que nunca ninguém amou. Não sei nada da crueldade que se abate sobre eles. Não sei nada dos meninos que não puderam ser meninos.

Em minha casa os meninos contam os dias que faltam para o Natal. Cheiram a maçãs e têm olhos brilhantes.
Que sei eu dos olhos e dos cheiros dos outros meninos?
Como são egoístas as minhas ilusões, quando para eles seria apenas a ilusão de ser menino...